quarta-feira, 31 de janeiro de 2024

O Ex

 Por PC Mapengo


“Tu és jornalista?”


Perguntou o pai trincando um grande pedaço de maçã e mastigando como se tivesse raiva da fruta por ter aparecido na sua mão. Mas não parecia zangado. Até estava simpático à minha frente que conseguia me confortar numa dura cadeira de madeira com as pernas  apertadas como um velho cão assustado. 


“A minha filha disse  que o namorado era jornalista” - voltou a falar o homem sem deixar de descarregar toda a fúria dos seus dentes naquela maçã. Eu podia ouvir o ruído do seu mastigar. A sua esposa estava mesmo ao lado a sorrir enquanto a filha levantava os pratos da mesa procurando os meus olhos que se refugiavam nas minhas mãos transpiradas.


 Acho que estava nervoso. 


“Minha filha sempre teve juízo, sabia que nunca se iria meter  com estes miúdos da zona que não fazem algo útil. Foi escolher um homem com uma profissão nobre.”


Pai” - o tom dela era mais de agradecimento pelo elogio que replicar o velho pelo seu comentário. 


“Vamos filha, deixemos os homens conversarem” - a mãe falava se retirando da mesa  e desaparecer com a filha depois de me sorrir  com alguma elegância. Me senti mais desamparado ainda em frente aquele homem. 


“Se ele conseguia descarregar a raiva na maçã, o que faria de mim?” - Pensei suplicando mentalmente que as mulheres não me deixassem sozinho.


“Eu sempre gostei de jornalistas. Acho que eles têm uma posição privilegiada de ver o mundo. Claro que também estão bem posicionados para receberem balas.” Desfez uma gargalhada com a boca bem aberta que se podiam ver restos da maçã desfeita. Percebia-se  que aquela era a sua melhor piada. Forcei meus lábios a desenharem o que pudia estar mais próximo de um sorriso de cortesia. 


Suspirou. Recompôs-se.


Aproveitei essa oportunidade para desfazer os males entendidos. 


“Me desculpe senhor  Armando, mas… - dei uma pequena pausa para escolher as melhores palavras e escapar ao mesmo destino da maçã.- “não sou jornalista”


Na verdade há muito que não entro numa redacção.  Ou melhor, vou lá apenas para ser entrevistado. O meu trabalho agora é escrever guiões de filmes, contos, artigos e tantas outras coisas sem sentido. Deixei essa tarefa nobre para os verdadeiros heróis e olho para suas lutas como uma pessoa normal, desejando a voz deles para fazer passar a minha indignação. 


Logo que parei de me explicar ele desatou a rir.

 

“Durante quanto tempo foste jornalista?”


“Durante 16 anos”


“E acreditas mesmo que já não és jornalista?”


“Há muito tempo que nao escrevo uma notícia, um artigo jornalístico, que não me sujeito a pressão da redacção ou a uma bela reportagem acreditando que possa mudar o mundo”


Voltou aquela sua raivosa e desconcertante gargalhada.


“E só por isso achas que já não és jornalista?”


“Já não sou. Sou apenas um guionista”


O seu rosto ficou sério com os olhos a penetrarem violentamente nos meus, os obrigando a se desviar.


“Estás a me dizer que existe uma ex-prostituta?” - Voltou a gargalhar.


Olhei para ele. Não entendi a comparação!



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