segunda-feira, 1 de agosto de 2011

Carta ao General (Actualizada)

As vezes construímos sonhos
em cima de grandes pessoas...
O tempo passa... e descobrimos
que grandes mesmo eram os sonhos
e as pessoas pequenas demais para torná-los reais!
Bob Marley







Meu velho general,



Desta minha Matola onde Basílio Muhate e Milton Machel, sem compreenderem como nós os dois que é bom criar trincheiras, dizem que fico a me fantasmagorizar, te escrevo esta carta de quem nunca percebeu para quê servem as armas, muito menos as guerras.


Mas há tanta coisa que eu não percebo meu general. Por exemplo como é que não consegues compreender que o jogo acabou mesmo depois do apito final.


Quando falo do jogo me recordo de uma entrevista que deste na TVM, há anos para o programa “Estamos Juntos”, penso que era esse, de Emílio Manhique onde falavas do teu amor pelo futebol e que não gostavas por nada de perder.


Me disseram que também és do Ferroviário, General. Penso que agora que mudaste a capital para Nampula dificilmente irás ao Estádio da Machava. Eu também não iria General, aliás, também não vou apesar do Estádio estar no quintal da minha casa.


Mas o senhor tem outras razões para não se dirigir a Machava. Não se pode trocar Nampula pela Machava.


Olha General, eu percebo a tua vontade de mudar a capital para Nampula. Eu também se tivesse o mesmo poder que o senhor o faria. Não quero acreditar que seja por razões políticas. Há coisas mais importante que política. A minha amiga Ani, romântica como ela sempre foi diria mesmo que há coisas mais importantes que política e dinheiro e nós os dois sabemos o que é.


Se meu amigo Egídio Vaz, um ilustre bicho político, viesse me dizer que a política está em tudo, ficaríamos logo com a certeza que ele nunca foi a Nampula com espírito de um verdadeiro cavalheiro.


Em Nampula aprende-se a saborear com os olhos o mais puro da beleza sensual. É só te pendurares num dos postes das velhas ruínas da Ilha de Moçambique para te deliciares com a sensualidade da dança de um feminino corpo macua, como as senhoras do grupo Estrela Vermelha. Sabe general que sempre que olho para aquelas mulheres dançar com toda aquela levaza chego a pensar que elas controlam o tempo?


Sim, lá se controla o tempo. Pelo menos elas controlam o tempo, elas ditam as regras e tu te apaixonas, soltas o verbo e pensas que caçaste quando não passas de uma presa.


Penso que um homem honesto e de uma boa família, isto só para não dizer bem-educado, não pode ir a Nampula casado. Em Nampula não se vai casado casa-se lá.


Voltando aquela entrevista, General, eu percebo hoje o porquê da promessa de pôr o país a “arder chama”.


Mas no lugar de olhar para o que os outros fazem para que o senhor não ganhe as eleições, para que se ponha em causa as suas ordens, para que se recuse um diálogo puro por parte do seu oponente, porquê não prestar atenção àquilo que o General faz para perder.


Gostei do seu regresso em Cabo Delgado meu General. A nossa política estava a ficar nos mesmismos com os avanços e recuos do ministro dos transportes, com a falata de coesão nos discursos da cesta básica do nosso Governo, com auto elogio do partido no poder. Estava tudo cansativo e precisava de algo novo de uma outra linha. O seu despertar nessa província das lindas praias veio mudar o discurso político e pôr gente a comentar algo diferente. Parabéns general.


Contudo general, penso que o senhor não se apercebeu que uma luta política não se ganha com as mesmas estratégias de guerrilha. Penso que se esqueceu de se desmobilizar. Se esqueceu da famosa frase de “um homem válido na guerra é inválido na paz.”


O senhor conseguiu manter-se líder. Mas faltou dar sustento a essa figura de “líder” que sempre ostentou.


Repete a ideia de ser mais jovem e mais bonito como se eleições fossem concursos de beleza e porte físico.


General, nunca ouviu os economistas dizerem “cuidado com os pequenos furos porque fazem grandes rombos”?


Não General, acho que a sua estratégia, pode até ter ser boa em termos militares mas politicamente não funciona General!


Não acredito que funcione a sua ostentação de força apresentando-se como o homem mais armado desta nossa “Pátria Amada” mesmo reconhecendo que a nossa segurança é composta por uns “magrinhos” que o General pode pegar “um a um”. Porquê lembrar sempre os nossos pecados? Porquê tem de nos pôr constantemente entre a bazuca e a parede?


Sei que não tenho direito de me meter na sua vida, mas acho que é hora exacta para irmos nos sentar na nossa nova capital apreciar o que de mais belo há lá. Vamos ouvir Boby Marley e reinventarmos a nossa paz.


Aquele abraço, General

terça-feira, 11 de janeiro de 2011

A Cor Apagada de Matalana

A alma humana é como a água:
ela vem do Céu e volta para o Céu,
e depois retorna à Terra, num eterno ir e vir.
Johann Wolfgang Von Goethe, escritor e pensador alemão

Para Virgílio Sitole, o bailarino de Matalana




Gostava de saber como é que um coreógrafo na China recebe a notícia da morte de um pintor. Um dia te escreveria para falarmos de Matalana, que há muito tempo não vamos para nos esquecermos da correria da cidade.


Sabes Virgílio, as cidades têm esse poder de nos sufocar nos tristes noticiários de austeridade, que nunca percebemos em quê realmente se corta e onde os preços realmente foram congelados. É onde fingimos a nossa existência empacotados nos fatos e gravatas, como se neles reflectíssemos toda a nossa inteligência. Assim fingimos a nossa seriedade.


A cidade é uma existência irrealista, onde mais do que ser é preciso parecer. É preciso sentar-se na explanada de um restaurante caro e pedir um duplo de wiskey com muito gelo, demorar-se duas horas na mesma página de jornal simplesmente para muitos passarem por ti e acreditarem que tens condições para pertencer à elite.


Por isso que nós íamos à Matalana, Virgílio. Lá voltávamos à nossa condição humana. Não tínhamos de parecer inteligente com uma pequena chávena de café que tomávamos em duas horas numa explanada de luxo. Tínhamos de parecer nós.


E fomos na roda de canhu em Fevereiro, numa casa enfrente a obra de Malangatana, onde entramos feito turistas e vasculhamos cada detalhe da sua construção como se inspeccionássemos o tempo. Admirávamos tudo que, para ti, sobrinho do mestre, parecia normal. Até à sua grandeza era para si normal. Penso que essa é a desvantagem de ser parente de astros, pois nunca conseguimos ter a noção do brilho deles.


Será que conseguias olhar para ele para além dessa condição natural de ser seu tio, ascendendo para o seu estatuto de artista universal que não precisava de ser apresentado? Perguntei-te isso quando subíamos o areal que dava à casa da sua mãe Tchembene, onde os velhos se reuniam para beber xindere com o prazer diferente do nosso beber wiskey para ganhar estatuto.


Sim, Virgílio, em Matalana a música é uma coisa permanente. É como se as pessoas inventassem motivos para cantarem. É como se tudo desse uma linha para música. Por isso que essa tendência “malangatana” para cantar em qualquer momento não me surpreende.


Melhor seria dizer que Marracuene pode não ter criado a música, mas aquele distrito soube fazer da música a sua forma de respirar. Por isso que surgiu esse eterno “duelo” de Fanny Mpfumo e Dilon Djindji. Tu sabes, Virgílio, que são dois mestres que entrar em debate sobre quem é melhor não interessa.


Mas, quando te falava da roda de canhu em Matalana, onde Malangatana apareceu e pôs-se logo a cantar tamboreando a sua barriga como a electrizar todo o mundo para o seguir, alguns velhos que se juntaram a nós foram falando de Dilon. Mesmo não sendo de Matalana, a sua fama de “Don Juan”parece ter se estendido por lá, onde espalhava seu charme juvenil com uma viola, que o dava passaporte nas principais cerimónias do distrito. Dilon diz que “marrabenta” vem também daí. Recorda-se que nos contou também em Matalana, essa sua tendência de arrebentar com todas.


Se Marracuene teve a capacidade de criar estrelas como Dilon, Armando Mabjaia e Fanny, Matalana conseguiu chamar para si, na sua miniatura, senhores que dominariam o panorama cultural moçambicano, como o fez Lindo Lhongo.


Como Malangatana, Lhongo teve a capacidade de voltar às origens e beber tudo que as ervas do seu Matalana o podiam oferecer. Se formos a falar de dramatologia moçambicana, Lhongo posiciona-se como o líder da fileira. “O lobolo” é a sua mais emblemática obra. Lhongo distancia-se do tradicionalismo que muitos procuram demonstrar quando tratam destes assuntos para mostrarem que são mais africanos que os outros. Ele apresenta-se como artista que deixa a alma falar mais do que as regras que os críticos colocam. A isto Malangatana dizia que era “pintar o que sonho ou o que está na cabeça”. Esse parece ser o lema dos senhores de Matalana, deixar a alma falar mais alto que a cabeça.


Em Matalana, onde há muito não voltamos mano para sentarmos à volta da fogueira e fingirmos sermos bons contadores de história na noite, onde, mentalmente, inventamos monstros com base nas pinturas de Malangatana, sentias a verdadeira paz.


Podia voltar agora para vermos as longas pernas de Mudledlelene que se posiciona logo na entrada do Centro Cultural, como se fosse guardião dos segredos dos filhos da terra. Gostava do mito de Mudledlelene que você e seus companheiros de “Batalhão Zero” contavam nessas noites. É nas noites que animavam as histórias. Depois de irmos convencer a sua mãe e cunhada do mestre, Tchembene para nos dar uma “primeirinha”- diziam ser boa para lombrigas – as noites ganhavam cor e nós nos inspirávamos.


Diziam que Mudledlelene estava contra os amores roubados. Os homens e mulheres encontravam-se no extenso mato de Matalana para se amarem. Preferiam sempre as noites sem luar para se esconderem-da visão feiticeira de Mudledlelene. Quando os amantes se entregavam aos prazeres Mudledlelene – não conheço o seu género, apesar das belas ancas – aparecia e dizia “ni ku vonile”, o mesmo que “ti vi”.


Malangatana não escondia as histórias de feitiçaria que moldavam Matalana. Assumia essa sua existência e assim assumia a sua condição de homem de uma terra com identidade própria. Era como se dissesse sou do mundo, mas sou daqui. Penso que é isso que faz a vocês também jovens de Matalana, Virgílio. Podias ser simplesmente um coreógrafo da cidade que se perde pelas terras chinesas e não volta a Matalana para buscar os fantasmas que te assustaram na infância para o seu bailado, como também não o teria feito Cardoso Lindo como encenador, ir buscar à forte tradição da terra do seu pai Lindo Lhongo para contar a história colonial.

Ir à Matalana era minha forma de fugir a essa inexistência, que a cidade me oferece e tentar encontrar-me na terra onde todos aprenderam na infância a serem artistas. Onde ainda voltam nas noites quando os bebés nascem para as mostrar a lua ao jeito de “kenkeguelekeze”.

Um dia vou escrever-te sobre Matalana sem ser para falar da dor ou da cor “apagada” de Matalana.