terça-feira, 16 de janeiro de 2024

Nós não matamos o Cão Tinhoso

 Liberdade é pelo que lutamos quando tememos perder a paz


Não, não foi nenhuma mentira.


Na verdade ele morreu, nós o matamos. Vimos os miúdos, no meio daquela floresta a descarregarem sobre ele as suas espingardas. O seu corpo transformou-se em buracos de rede de pesca e estendeu-se ali, morto.


Ou melhor, pensamos que estivesse morto.


Nos abraçamos naquela interminável alegria, naquele dia chuvoso de Junho. Sentimos o alegre cheio da liberdade e naquela memorável noite em que nos abraçávamos incansavelmente sem nos interessarmos em saber de onde cada um de nós vinha, nos juntamos na Machava para vermos alegremente a nossa bandeira subir enquanto baixava-se triste fotografia daquele maldito cão tinhoso.


Era o doce cheiro de liberdade.


Nesse dia, tivemos o prazer de sonhar.


Não haveria mais vinho para os pretos. A nós não se reservaria mais a porta dos fundos e assistirmos o gordo patrão comendo bacalhau. Não seríamos mulas de carga de ninguém, não nos contentaríamos com quarta classe elementar e nos orgulharmos em voz alta por conhecermos Zé Maria Relva. Não iríamos sorrir a tudo que o patrão dissesse só para parecermos simpáticos.


Nós matámos o cão Tinhoso.


Ou, pelo menos naquela noite, na Machava, onde ouvíamos pela rádio numa voz forte e firme alguém gritar “moçambicanas, moçambicanos” tínhamos certeza que havíamos aniquilado o cão Tinhoso.


Foi a nossa noite mais longa. Saímos à rua para brindar. Fizemos amor como se não houvesse mais amanhã. Rasgamos as guias que nos permitissem entrar para a cidade reservada apenas aos brancos.


Nós éramos os patrões.


Pelo menos assim pensávamos naquela noite que alguém gritava lá na Machava “operários, combatentes, camponeses”, nos sentindo todos incluídos num projecto onde ninguém ficaria de fora só por pegar uma enxada. Era doces palavras com aroma de inclusão.


Tínhamos certeza absoluta da morte do cão Tinhoso.


Todos nós o vimos morrer.


Nós vimos os miúdos meterem um cartucho na Calibre 12 de Dois Canos e o desfazer em pedaços. Por isso que enchemos a Machava e choramos enquanto assobiávamos quando o homem bradava proclamar solenemente a Independência Total e Completa de Moçambique”.


Foi emocionante!


Mas nós não matamos o cão tinhoso.


Não sei como, mas ele reapareceu vestido de fato e ocupou os escritórios, sorrindo ao nosso lado. Nos encaminhou aos “my love” nas mesmas avenidas onde os jovens saíram marchando aos gritos “Povo no Poder” enquanto os médicos pelas varandas dos seus consultórios reivindicam melhores condições e os professores fartam-se de beber água.


Não me perguntem como.


Todos nós vimos o cão Tinhoso morrer, mas ele está ali. Em belos discursos que mostram uma nação onde o povo que não tem emprego e consegue ter três refeições por dia, onde quase 50 anos depois ainda temos filhos em salas sombras, onde a guerra ainda é uma realidade.


Não sei como. Todos nós vimos o cão tinhoso morrer.


Não sei como explicar, mas ele não morreu. Voltou. Festejou connosco a memorável noite da Machava, parecia tão humano como nós. Chorou como nós choramos de emoção pela sua morte, amou como nós a amamos.


Esteve sempre ali, do nosso lado.


Mas tenho certeza que o vimos morrer!



Inspirado em “Nós Matámos o Cão Tinhoso” de Luís Bernardo Honwana


#CartasAModaAntiga


Sem comentários: