terça-feira, 11 de janeiro de 2011

A Cor Apagada de Matalana

A alma humana é como a água:
ela vem do Céu e volta para o Céu,
e depois retorna à Terra, num eterno ir e vir.
Johann Wolfgang Von Goethe, escritor e pensador alemão

Para Virgílio Sitole, o bailarino de Matalana




Gostava de saber como é que um coreógrafo na China recebe a notícia da morte de um pintor. Um dia te escreveria para falarmos de Matalana, que há muito tempo não vamos para nos esquecermos da correria da cidade.


Sabes Virgílio, as cidades têm esse poder de nos sufocar nos tristes noticiários de austeridade, que nunca percebemos em quê realmente se corta e onde os preços realmente foram congelados. É onde fingimos a nossa existência empacotados nos fatos e gravatas, como se neles reflectíssemos toda a nossa inteligência. Assim fingimos a nossa seriedade.


A cidade é uma existência irrealista, onde mais do que ser é preciso parecer. É preciso sentar-se na explanada de um restaurante caro e pedir um duplo de wiskey com muito gelo, demorar-se duas horas na mesma página de jornal simplesmente para muitos passarem por ti e acreditarem que tens condições para pertencer à elite.


Por isso que nós íamos à Matalana, Virgílio. Lá voltávamos à nossa condição humana. Não tínhamos de parecer inteligente com uma pequena chávena de café que tomávamos em duas horas numa explanada de luxo. Tínhamos de parecer nós.


E fomos na roda de canhu em Fevereiro, numa casa enfrente a obra de Malangatana, onde entramos feito turistas e vasculhamos cada detalhe da sua construção como se inspeccionássemos o tempo. Admirávamos tudo que, para ti, sobrinho do mestre, parecia normal. Até à sua grandeza era para si normal. Penso que essa é a desvantagem de ser parente de astros, pois nunca conseguimos ter a noção do brilho deles.


Será que conseguias olhar para ele para além dessa condição natural de ser seu tio, ascendendo para o seu estatuto de artista universal que não precisava de ser apresentado? Perguntei-te isso quando subíamos o areal que dava à casa da sua mãe Tchembene, onde os velhos se reuniam para beber xindere com o prazer diferente do nosso beber wiskey para ganhar estatuto.


Sim, Virgílio, em Matalana a música é uma coisa permanente. É como se as pessoas inventassem motivos para cantarem. É como se tudo desse uma linha para música. Por isso que essa tendência “malangatana” para cantar em qualquer momento não me surpreende.


Melhor seria dizer que Marracuene pode não ter criado a música, mas aquele distrito soube fazer da música a sua forma de respirar. Por isso que surgiu esse eterno “duelo” de Fanny Mpfumo e Dilon Djindji. Tu sabes, Virgílio, que são dois mestres que entrar em debate sobre quem é melhor não interessa.


Mas, quando te falava da roda de canhu em Matalana, onde Malangatana apareceu e pôs-se logo a cantar tamboreando a sua barriga como a electrizar todo o mundo para o seguir, alguns velhos que se juntaram a nós foram falando de Dilon. Mesmo não sendo de Matalana, a sua fama de “Don Juan”parece ter se estendido por lá, onde espalhava seu charme juvenil com uma viola, que o dava passaporte nas principais cerimónias do distrito. Dilon diz que “marrabenta” vem também daí. Recorda-se que nos contou também em Matalana, essa sua tendência de arrebentar com todas.


Se Marracuene teve a capacidade de criar estrelas como Dilon, Armando Mabjaia e Fanny, Matalana conseguiu chamar para si, na sua miniatura, senhores que dominariam o panorama cultural moçambicano, como o fez Lindo Lhongo.


Como Malangatana, Lhongo teve a capacidade de voltar às origens e beber tudo que as ervas do seu Matalana o podiam oferecer. Se formos a falar de dramatologia moçambicana, Lhongo posiciona-se como o líder da fileira. “O lobolo” é a sua mais emblemática obra. Lhongo distancia-se do tradicionalismo que muitos procuram demonstrar quando tratam destes assuntos para mostrarem que são mais africanos que os outros. Ele apresenta-se como artista que deixa a alma falar mais do que as regras que os críticos colocam. A isto Malangatana dizia que era “pintar o que sonho ou o que está na cabeça”. Esse parece ser o lema dos senhores de Matalana, deixar a alma falar mais alto que a cabeça.


Em Matalana, onde há muito não voltamos mano para sentarmos à volta da fogueira e fingirmos sermos bons contadores de história na noite, onde, mentalmente, inventamos monstros com base nas pinturas de Malangatana, sentias a verdadeira paz.


Podia voltar agora para vermos as longas pernas de Mudledlelene que se posiciona logo na entrada do Centro Cultural, como se fosse guardião dos segredos dos filhos da terra. Gostava do mito de Mudledlelene que você e seus companheiros de “Batalhão Zero” contavam nessas noites. É nas noites que animavam as histórias. Depois de irmos convencer a sua mãe e cunhada do mestre, Tchembene para nos dar uma “primeirinha”- diziam ser boa para lombrigas – as noites ganhavam cor e nós nos inspirávamos.


Diziam que Mudledlelene estava contra os amores roubados. Os homens e mulheres encontravam-se no extenso mato de Matalana para se amarem. Preferiam sempre as noites sem luar para se esconderem-da visão feiticeira de Mudledlelene. Quando os amantes se entregavam aos prazeres Mudledlelene – não conheço o seu género, apesar das belas ancas – aparecia e dizia “ni ku vonile”, o mesmo que “ti vi”.


Malangatana não escondia as histórias de feitiçaria que moldavam Matalana. Assumia essa sua existência e assim assumia a sua condição de homem de uma terra com identidade própria. Era como se dissesse sou do mundo, mas sou daqui. Penso que é isso que faz a vocês também jovens de Matalana, Virgílio. Podias ser simplesmente um coreógrafo da cidade que se perde pelas terras chinesas e não volta a Matalana para buscar os fantasmas que te assustaram na infância para o seu bailado, como também não o teria feito Cardoso Lindo como encenador, ir buscar à forte tradição da terra do seu pai Lindo Lhongo para contar a história colonial.

Ir à Matalana era minha forma de fugir a essa inexistência, que a cidade me oferece e tentar encontrar-me na terra onde todos aprenderam na infância a serem artistas. Onde ainda voltam nas noites quando os bebés nascem para as mostrar a lua ao jeito de “kenkeguelekeze”.

Um dia vou escrever-te sobre Matalana sem ser para falar da dor ou da cor “apagada” de Matalana.

1 comentário:

Julio Mutisse disse...

Descanse em paz Ngwenya. Porque este homem ha muito deixou de ser APENAS Ngwenya ou pertenca dos seus mais chegados, as minhas sentidas condolencias a Mocambique.

Humula Ngwenya.