quinta-feira, 28 de maio de 2009

Cristianização de Eduardo Mondlane

Matola, aos 29 de Maio de 2009
"Existe uma chave para a liberdade:
Pense!
Se quiseres ser um cordeiro, seja feita a tua vontade.
Não reclames, entretanto, quando fores servido em nosso grande Sabbath!"
Um velho dito pagão, do século XX
Querido amigo Egídio Vaz
Depois da conversa daquela tarde de sábado no encontro dos jovens pensadores na AEMO, não parei de pensar no papel dos heróis. Partia exactamente do papel da história, para uma sociedade como nossa, e o impacto que a figura de herói pode ter para a nossa auto-estima.

Podíamos debater sobre isso na tua qualidade de historiador que adora desafios sociais. Mas fui me perdendo na criação dos heróis e a preocupação que se tem nos últimos dias para a sua reinvenção.

Depois da independência, como se não bastasse a bravura dos guerreiros para se hastear a nossa bandeira como um Estado soberano, era preciso inventar nossos próprios “símbolos tradicionais.” E os heróis, principalmente das independências dos nossos estados africanos carregam essa áurea mística sobre humana.

A criação dos nossos maiores heróis, Eduardo Mondlane e Ngungunhane, não escapou a esse revestimento para que nos oferecessem como homens puros e dignos como mortais.

No entanto, a construção deles é feita em linhas diferentes também pela forma como viveram.

Se para Eduardo Mondlane há uma unanimidade, o mesmo não se pode dizer de Ngungunhane, visto por uns como símbolo da resistência nacional e por outros como um invasor e ladrão de mulheres.

Tenho dificuldades em imaginar se realmente os chopes podem considerar, na sua plenitude, Ngungunhane como um herói, se a volta da fogueira – se é que ainda existem fogueiras, e supondo que existam - os seus avos os contarem as violentas histórias do exército do império de Gaza no seu próprio território.

A construção de Ngungunhane como herói nacional foi bem mais complexa que a de Eduardo Mondlane. Primeiro teve que se fazer uma purificação do homem. Este ritual passava por o transformar de invasor, ou um colonizador de sul e norte de Moçambique a vítima da opressão estrangeira. Aqui deparamos com uma outra dimensão de “estrangeiro” que passa pelo reconhecimento da africana “dinastia de Gaza” como locais e somente os europeus como “estrangeiros”.

Transformando Ngungunhane num dos nossos passa a ser mais fácil a purificação. Ele entra triunfalmente para a nossa história como um símbolo de resistência.

Mas a transformação de opressor a herói não pode surpreender se estivermos a falar de um país que tem o mérito de celebrar com todo o fervor as suas derrotas como fazemos com Gwaza Mutine.

Com Eduardo Mondlane acontece o contrário. Como o definiu a professora Tereza Cruz e Silva numa entrevista que me concedeu para falarmos de heróis, Eduardo Mondlane “é uma pessoa admirável, um jovem que embora sendo de uma família real é pobre e modesto. Mas a coisa que mais me marcou era a vontade firme de saber querer mais, aprender, pensar e avançar.”

Para mim, sinceramente, apesar de toda a ornamentação que se coloca em volta a Eduardo Mondlane, penso, como também disse Cruz e Silva, que ele não precisa. Ele tem uma espécie de estatuto natural.

Mas é importante ver como se constrói este herói que lembra algo de Messias. Primeiro há uma espécie de profetização, não quero discutir se é mito ou não. Mas há uma espécie de anúncio do seu aparecimento que se assemelha ao que o profeta Natan revela ao rei Davi: “O Senhor fará surgir de ti uma descendência. Quando chegar o fim dos teus dias, manterei depois de ti a descendência que nascerá de ti e consolidarei o seu reino. Serei para ele um pai, e ele será para Mim um filho.”

Quanto a Mondlane, as narrativas tradicionais também colocam o discurso na boca – curiosamente – de Ngungunhane na hora de partida para os Açores: “Mas o rei um dia há-de vir e sairá de Mandlakazi”.

Não foi exactamente um “rei” mas alguns historiadores não têm dúvidas que Ngungunhane se referia a Eduardo Mondlane.

Nascido numa família nobre – filho de chefe –, no lugar de lutar pelo seu trono arrasado, curiosamente, pelo exército do império de Gaza, Mondlane opta por um percurso de salvação da pátria.

Como Jesus, que descende de Davi, renuncia esse poder pelo bem de um povo e morre para o salvar. Renuncia a boa vida que poderia ter nos arranha-céus de Nova Iorque para salvar a terra e os homens e acaba “crucificado” num livro. Os seus camaradas repetem “o seu sangue não foi em vão.”

Isso me recorda “eis o meu sangue.”

O importante Vaz é notar que estas imagens heróicas desempenharam o seu papel na construção desta Pátria Amada. Numa altura que atravessávamos a guerra civil, numa altura de apelo a unidade nacional, precisávamos desses heróis. Eles desempenharam cabalmente o seu papel.

No entanto meu companheiro, toda a estrutura em que a nossa história pós-colonial foi construída está a ser abalada indicando o fim da “lua-de-mel”. A revolução venceu e, sabemos nós que todas as revoluções quando atingem os seus objectivos morrem.

O princípio do esfriamento da imagem do “herói Eduardo Mondlane” já vem de há um tempo e penso que o Estado moçambicano se apercebeu disso e antecipou-se com a remoção da sua figura da moeda nacional.

Era a ascensão de Samora Machel.

Fazia sentido ir se buscar o primeiro Presidente da República para o oferecer a nova geração que pouco se identificava com temas como a colonização e independência.

Mas, embora se olhe para ele como o símbolo de boa governação, será que oferece a mesma unanimidade que Eduardo Mondlane? É discutível. Basta só ver o que um dos maiores escritores moçambicanos, Ungulane Ba Ka Khosa, diz no livro “Os Habitantes da Memória” de Nelson Saúte: “Samora Machel um nome de que, sinceramente, nunca gostei. Nunca gostei porque, a primeira vez que eu o vi e ouvi, tive medo. (…) notei que era um indivíduo com todas as características para ser um ditador. Se naquele momento, ele me apontasse com o dedo dissesse: “Matem aquele fulano” eu poderia ser um cadáver. (…) A partir daí nunca tive admiração por ele como um indivíduo.”

A ideia de “Samora ditador” é também controversa. Os partidos moçambicanos da oposição assim como alguns académicos procuraram o responsabilizar, assim como ao seu partido pelo descalabro económico do país.

Tornou-se frequente olhar-se para a adopção do socialismo/comunismo como ideia exclusiva da Frelimo de Machel. Sim, surgiu uma espécie de posicionamentos entre a Frelimo de Machel e a de Mondlane, supondo-se que esta última era contra o socialismo, marxismo e leninismo.

Mas é importante olhar para a entrevista que dá a Aquino de Bragança onde assume que o tipo de luta assim como o colonialismo que enfrentava obrigava a uma via socialista. Ele não esconde a sua crença no Marxismo-Leninismo.

No processo de heroificação o socialismo fica como exclusividade de Samora Machel. Há também grupos que dizem não acreditarem que Mondlane enveredaria pela mesma política, que não concordaria com as decisões tomadas depois da independência. Mas isso meu companheiro é simplesmente “se” e nós sabemos que a história não é feita de “ses”.

Ba Ka Khosa, não retira a importância histórica de Samora Machel, mas parece sugerir essa falta de unanimidade de que falava.

O que quero dizer meu caro Vaz é que os heróis devem ser constantemente renovados para se adaptarem aos contextos.

Os heróis devem ser renovados.

A celebração de 2009 como ano Eduardo Mondlane pode ter essa missão mas é importante ver como é que em pleno século XXI, na era da globalização, de mercados comuns, de HIV/SIDA e pobrezas absolutas, se pode aproveitar a imagem de Eduardo Mondlane como catalizador nas várias batalhas que o Estado tem que travar rumo ao tão almejado bem estar.

Aquele abraço.

Policarpo Mapengo

quinta-feira, 7 de maio de 2009

De Conversas Informais a Liberdade de Imprensa

Para Júlio Mutisse
e todos que como eu
ainda acreditam no jornalismo
A vida é tão querida ou a paz tão preciosa
que devem ser compradas à custa da escravidão?
Não permitais, Deus todo-poderoso!
Ignoro o caminho que os outros seguirão,
mas a mim dai-me liberdade ou a morte.
- dos prémios Nobel de Literatura e Pullitzer, John Steinbeck
em O Inverno do Nosso Descontentamento.



Matola, 06 de Maio de 2009

Querido amigo Júlio Mutisse,
Neste mês de trabalhadores te escrevo desta minha Matola para te falar de jornalismo, uma profissão que aprendeste a admirar mesmo não sendo a tua área. Te escrevo porque sei que tu, como muitos amigos meus entre eles Milton Machel e Anselmo Titos ainda acreditam no poder do jornalismo.

Na noite da quinta-feira, um dia antes do primeiro de Maio, o presidente do Município da Matola, Arão Nhancale, convidou jornalistas para uma conversa informal. Olhe meu companheiro, nos últimos tempos, a ideia de “conversa informal” prolifera na nossa praça.

Esse encontro que devia ter servido para, “informalmente”, discutir se com o chefe do executivo da Matola sobre os problemas do município, analisar os aproximadamente 90 dias da sua governação e, até certo ponto, darmos uma assessoria.

Dizia que esse encontro se transformou claramente num campo de afrontas entre os jornalistas, cada um a tomar a sua posição que mais podia se comparar com trincheiras.

A discórdia meu caro Júlio vem, acho eu, do termo “conversa informal”. Para uns, como eu, é exactamente nessas conversas informais que temos de dizer aos nossos líderes o que está mal.

Sabes que apesar de elogiar sou da opinião que as pessoas, principalmente os nossos governantes não devem fazer coisas boas a espera de nossos aplausos pois, para mim, fazer tais coisas boas é dever deles. Mas, quando não fazem, temos sempre de os lembrar que não estão a fazer bem.

Os encontros informais devem ter esse papel. Como disse um dos jornalistas presente nesse encontro, “o presidente não nos chamou aqui por sermos bonitos ou termos olhos azuis.” Eu acrescento que Nhancale não nos chamou para o Mutchipe por sermos amigos dele com quem podemos beber uns copos falando das mulheres elegantes. Acredito que ele não precisa de nós para isso. Aliás, um assessor de políticos brasileiros já disse que “jornalista não é amigo de político” isto porque enquanto um quer informação outro quer fazer passar as suas ideias e a sua imagem de “bom moço.”

No entanto, Júlio, a conversa não avançou porque enquanto uns defendiam o aproveitamento daquele “informal” para mostrar ao presidente que nos três meses de poder pode se fazer muita coisa, outros queriam que aquele fosse um encontro de brothers. Lembro-me que um até perguntou em voz alta “vocês não sabem o que é um encontro informal?”. Naquele encontro tive a certeza que não sei o que é “encontro informal.”

Um colega meu, Serôdio Towo, que como eu não sabe o que é um encontro informal, elevou a sua voz para mostrar que descobriu a pólvora: “afinal este encontro é para comermos e beber?”

Isso é que é informal.

Uma vereadora, já na saída veio ter comigo para reclamar que nós – jornalistas – estragamos tudo porque aquele encontro foi marcado pelo presidente para falar e nós só tínhamos que ouvir.

Isso é que é informal.

Mas, meu companheiro, em condições normais nem devia me surpreender. Para quem esteve também no “encontro informal” do Chefe de Estado, Armando Guebuza com os directores e os editores dos órgãos de informação nacionais isto nem deve surpreender. Ali estava a nata do nosso jornalismo. O Chefe estava a espera de contribuições dos pensadores, dos que fazem a opinião. Mas o que ouviu foram ilustres figuras a sugerirem ao Chefe de Estado a preocupar-se com uma má sinalização numa estrada do Bairro do Jardim; outro começou por dizer que era vizinho do chefão em Magoanine e este devia ver uma rua cheia de areal lá no interior daquele bairro. Um outro, que até é jovem (que geração meu deus?) director de uma rádio com nome das costas do nosso país sugeriu ao chefão que tomasse medidas para que os jovens não consumissem aguardentes como Cabeça de Velho ou outros tontontos que se vendem nas zonas centro e norte do país porque isso leva a decadência juvenil.

Não digo que estes assuntos não sejam importantes mas… vaka hina!

Estes dois encontros informais Júlio, nos levam ao debate de liberdade de imprensa, de expressão e de tantas outras por aí.

É neste tipo de encontro onde podemos também influenciar como quarto poder.

Antes de exigirmos que nos dêem liberdade nós temos de saber fazer uso da mínima liberdade que temos. Quando formos a discutir a questão das liberdades temos de ter em contas aquela que nós temos pela simples condição de sermos homens e aquela que devemos ter por pertencermos a uma sociedade. Depis de termos noção disso temos de ver se sabemos fazer uso delas.

Muitas das vezes nós reclamamos a falta de liberdade quando somos os primeiros a sufocar as nossas próprias liberdades e por vezes sem necessidade. Por vezes sufocamos a liberdade quando estamos num palco onde podemos aproveitar com classe os nossos “15 segundos de fama.”

Um dia depois do encontro com Nhancale, um relatório internacional publicado nos jornais portugueses “Diário de Notícias” e “Público” indicava que “apenas 17% de população se beneficia de uma imprensa livre.” Tomando o exemplo da Itália que é um dos países de jornais em abundância, pode se dizer que há uma imprensa livre quando a maioria desses órgãos estão nas mãos Sílvio Berluscone, por sinal Primeiro Ministro? Mas disto Milton Machel já falou quando levantou a questão de aparecimento de muitos jornais.

O que quero dizer Júlio é que antes de exigirmos algo dos outros temos de saber valorizar o que temos. Naquele encontro voltei a questionar se ainda podemos dizer que o jornalismo é o quarto poder em Moçambique e se alguma vez foi.

Infelizmente agora não me parece. Agora me parece mais um quarto onde o poder descalça as botas para alguém engraxar.

Meu companheiro tenho de parar por aqui porque a carta já vai longa.

Um abraço a todos que acreditam que o jornalismo pode ser um quarto poder.